O Super Trunfo das Letras

O ‘x’ da questão na tipografia corporativa, muitas vezes, é o ‘g’.

As pessoas não querem ver fontes. Elas querem, na verdade, só ler. Isso. Ler. Mas cá estamos, desenhando fontes diferentes todos os dias, vivendo numa aparente contradição. De um lado, as pessoas só querem ler, mas do outro, as marcas querem ser reconhecidas através de qualquer palavra escrita. Não é necessária física quântica para conciliar estes dois opostos, que precisam coexistir numa tipografia corporativa. Uma que exista para ser vista e ser lida ao mesmo tempo.

As teorias e a ciência do processo de leitura explicam que estes são, literalmente, opostos: a legibilidade virá da familiaridade com a qual o desenho das letras está dentro do que estamos acostumados a ler, e sendo assim, a tipografia será invisível, transparente como um cálice de cristal. Já para chamar a nossa atenção, ela precisa fazer o inverso: fugir da convenção. O diferente nos salta aos olhos, e exatamente por ser diferente, torna a tipografia menos legível.

A letra ‘g’ nos permite fugir da convenção, chamar a atenção, mas com danos controlados à legibilidade. Um estudo da Universidade John Hopkins apontou que a maioria das pessoas não têm consciência de que existem duas construções para a letra ‘g’ no dia a dia. A construção de ‘um andar’ é a mais conhecida, porque é a que aprendemos a desenhar na escola e que utilizamos na escrita à mão. Já a construção de ‘dois andares’, apesar de ser extremamente comum à nossa volta desde o século XV, as pessoas têm grandes dificuldades para sequer identificar o seu desenho correto.

Johns Hopkins University, 2018

“Eles não sabem dizer como é o desenho desta letra, embora consigam ler ela”, disse a coautora Gali Ellenblum, estudante de pós-graduação em ciências cognitivas. “Isso não é verdade para as letras em geral…”, e é exatamente por isso que ela se torna um coringa para ser bem jogado na tipografia corporativa. Na letra ‘g’ temos flexibilidade para explorar desenhos diferentes da construção usual, porque há mais do que uma. Explorar caminhos intermediários entre uma e outra é uma receita interessante.

A letra ‘g’ também tem a vantagem de ser utilizada sempre dentro de uma palavra, e não de forma isolada, entre frases, como acontece com muitas vogais. Porque o desenho inteiro da palavra tem prioridade no processo de leitura (e não o desenho de cada letra separada), mesmo que a letra ‘g’ seja pouco usual, o prejuízo à legibilidade é reduzido pelo contexto dela dentro da palavra.

É verdade que a letra ‘a’ também tem duas construções, com um ou dois andares, de origem similar ao ‘g’. Porém, a versão de um andar da letra ‘a’ pode ser facilmente confundida com a letra ‘o’, e, para piorar, ela é utilizada de forma isolada com frequência em muitos idiomas.

Ela pode funcionar bem em títulos, mas pouco em tamanhos pequenos. Você até poderá ver, mas não será tão fácil ler. Que é, afinal de contas, porque você continua aqui.

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A letter of the alphabet we can read but not write? It’s a ‘g’ thing. Jil Rosen, HUB John Hopkins University, 2018.

The devil’s in the g-tails: Deficient letter-shape knowledge and awareness despite massive visual experience. Wong, K., Wadee, F., Ellenblum, G., & McCloskey, M. Journal of Experimental Psychology: Human Perception and Performance, 2018.

A Guide to Understanding What Makes a Typeface Accessible. Gareth Ford Williams, Medium, 2020.

The Crystal Goblet, or Printing Should be Invisible. Beatrice Warde, 1930.

How does typeface familiarity affect reading performance and reader preference? Sofie Beier and Kevin Larson, Information Design Journal, 2013.