Por que a IA é o novo urinol de Duchamp?

Pensando sobre inteligência artificial e o futuro do design, eu quero lembrar um dos momentos mais icônicos da história da Arte Moderna.

Há pouco mais de 100 anos, Marcel Duchamp inscreveu o seu famoso urinol — um mictório, que ele comprou numa loja de construção e assinou com um pseudônimo — como uma obra de arte na Exposição dos Artistas Independentes, em 1917. Era um grupo de artistas novos, jovens, progressistas, livres pensadores, que desafiavam o conservadorismo e uma certa cafonice do mercado de arte da época.

Com essa obra, Duchamp inaugura uma categoria de arte chamada readymade; feita com objetos prontos, já existentes, que são colocados em um novo contexto¹. Duchamp dizia que a execução da obra, em qualquer técnica — o ato de pintar uma tela à óleo ou esculpir, com extremo cuidado, um bloco de mármore — não tem valor em si. O mais importante é a ideia; e não a sua execução. Bastava uma ideia, e um objeto pronto, num novo contexto.

A IA como nova fábrica de readymades
Objetos prontos, ou a alguns segundos de ficarem prontos, é a grande novidade que a IA generativa nos oferece. Textos, imagens e vídeos, do que você for capaz de imaginar, basta pedir que ela entrega. E entrega quantas variações você quiser. A primeira chefe que tive na vida, a Jacira, numa agência de publicidade, dizia: “Fabio, gosto de cliente não se discute, se lamenta”. A IA vomita o que você quiser dela.

O que a gente vai fazer com as dezenas ou centenas de versões que a IA nos entrega? O nosso papel está ganhando um componente de curadoria. Vamos focar aqui na segunda parte da ideia do Duchamp: um objeto pronto colocado em um novo contexto. Para nós, criativos, o contexto é a visão macro do problema. É entender o cliente, sua história, sua origem, os seus desafios, os seus públicos, as dores desses públicos, as dinâmicas de mercado; é entender mudanças na cultura, no comportamento das pessoas — isso é o contexto. E é nisso, nessa visão mais horizontal, que conecta diferentes áreas do conhecimento; de ter empatia e conseguir entender o que não tá necessariamente explícito, pedido num prompt… saber costurar isso tudo; essa é uma habilidade nossa, humana, que as IAs têm menos chances de nos substituir.

A realidade do mercado: qualidade vs. custo zero
É verdade que, para o mercado como um todo, não vai ser fácil. Muitas empresas vão ficar satisfeitas com o que a IA vai gerar pra elas. Se o resultado ficar 50% da qualidade do que um profissional faria, mas por um custo quase zero e com entrega imediata, eu receio que muitos gestores vão escolher isso. A gente lamenta, como dizia minha chefe — vai ficar clichê, cafona, sem graça —, mas não vai adiantar ficar discutindo.

A revolta dos artistas: história se repetindo
Os artistas na época de Duchamp também ficaram furiosos com ele. O urinol foi considerado indescente até por aqueles jovens rebeldes progressistas e não chegou nem a ser exibido na galeria oficial da exposição. A famosa foto que conhecemos dele foi feita somente dois dias depois. O urinol original se perdeu. Alguns dizem que foi destruído por membros da comissão organizadora. Porque a inscrição de Duchamp também significava que, a partir dali, qualquer um poderia ser artista. Basta um objeto pronto, em um novo contexto. Como assim? E eu que fiquei anos aprendendo a pintar, a esculpir, treinando todos os dias… Como assim, qualquer um agora pode fazer arte?

É uma realidade que a gente tem que lidar, de novo. Mas, calma.

Eu não sei se eu seria um designer de fontes hoje, se precisasse lapidar pequenos blocos de chumbo como no passado, que nem um ourives trabalha com joias. Eu não acho que teria essa habilidade. Eu nem desenho bem, e minha caligrafia é horrível. Eu fiquei tão aliviado quando soube que um dos meus grandes ídolos na tipografia, o Matthew Carter (ele desenhou a Verdana), conta que a letra dele também é horrível. Ele não sabe desenhar. É um designer impressionante, versátil, muito detalhista. E tá tudo bem não saber desenhar à mão. Tem mouse. A técnica por si só, a execução, está perdendo o valor.

O que as pesquisas revelam sobre IA e criatividade
Saiu um estudo² feito pela universidade de Londres com quase 300 pessoas para avaliar a criatividade, com e sem ajuda da IA. O que eles identificaram é que a IA aumenta a criatividade de quem não é criativo, mas não traz benefícios (e às vezes atrapalha) quem já é criativo. Ela não nos leva a novos patamares, mas ela faz subir quem é mediano.

Eu acredito que a IA vai resolver aqueles projetos que têm baixo valor agregado, mas que existem em grande quantidade, mas não vai substituir o que só a gente, eu e você, humanos, temos pra oferecer.

No palco de Cannes³, o CEO do grupo Publicis disse que caberá a nós termos as ‘big ideas’, nas palavras dele, e ao seu lado no palco, o CEO da Adobe promete que as ferramentas vão executá-las com uma facilidade sem precedentes na história. Temos visto isso. A IA sendo uma forma de materializar (e também democratizar) a execução de ideias. Eu sou cético quanto à qualidade final, do detalhe, do craft do que a IA entrega, mas se tem algo que é constante na história de todas as tecnologias é que elas começam assim: ruins, a gente acha ridículo, mas com o tempo elas vão melhorando, incrementalmente, o custo vai caindo, se popularizam e ficam melhores ainda, até o ponto de criarem uma verdadeira revolução. E a gente está vivendo uma agora.

Um conselho para sobreviver à revolução
O meu conselho a todos os designers, e criativos em geral, é focar naquilo em que sabemos que as IAs têm menos chances de nos substituir. Ao invés de uma habilidade técnica específica, é sobre ter uma perspectiva macro sobre os problemas, conectando diferentes áreas do conhecimento.

É sobre ter bom gosto, repertório, ter empatia, sentir o momento e as pessoas como indivíduos complexos e irracionais que somos.

¹ GOMPERTZ, Will. Isso É Arte? Editora Zahar, 2012
² DOSHI, Anil & HAUSER, Oliver. Generative AI enhances individual creativity but reduces the collective diversity of novel content. Science Advances Vol 10 No 28, 2024
³ NARAYEN, Shantanu & SADOUN, Arthur. The New Creative Frontier. Cannes Lions Festival, 2025

Foto de capa por Julian Wasser. MINK, Janees. Duchamp. Taschen, 1995