As Certezas Que Eu Tinha

Fios de cabelo branco começaram a aparecer.
O livro Mudar, do Édouard Louis, mexeu muito comigo.
Até alguns cílios, na minha sobrancelha, começaram a vir brancos.
Diferente dos milhares de fãs que o jovem francês conquistou ao redor do mundo, o que me tocou, também, foi observar atentamente os detalhes da fonte usada na capa da edição da Todavia, de 2024. Todavia.
Eu retiro eles com a precisão de uma pinça.
A fonte da capa traz o que os meus mestres chamariam de erros fundamentais no design tipográfico. Erros claros, que eu aponto em palestras e workshops.
Mas uma vez brancos, eles retornam branquinhos novamente.
Quando envelhecemos na nossa profissão?
Me parece natural que, com o passar de décadas de prática, a gente ache que entenda alguma coisa. É assim que funciona. É assim que se faz.
Um amigo futurista, o Tiago Mattos, adverte: cuidado com quem diz que tem 20 anos de experiência; talvez a pessoa tenha 1 ano de experiência repetido 20 vezes.
Se tem algo em comum entre os grandes criativos ao longo da história, é que eles desafiaram as regras do seu tempo. Desafiaram o ‘jeito certo de fazer’.
As pinceladas de Monet foram ridicularizadas como sendo inacabadas, feitas pela metade. Os rostos fragmentados de Picasso horrorizaram até o seu amigo Matisse. Os respingos de tinta de Pollock foram descartados como sendo feitos por “uma vassoura velha descabelada”.
No design, Carson provocou a ira ignorando todas as regras de legibilidade. O trabalho de Paula Scher já foi considerado “feio” por abandonar os sistemas de grid. Sagmeister chocou a todos fazendo design na sua própria carne.
Mas não precisa nem ser tão icônico. É natural que as novas gerações venham programadas para subverter os nossos alicerces. Fazer comédia no cinema com as nossas leis.
Diante da capa do livro Mudar, eu vejo um desenho de O que é um círculo perfeito. “Todos” sabem que um O nunca é um círculo perfeito. Porque a escrita vem da caligrafia e, no traço com uma pena caligráfica, as verticais ficam mais pesadas que as horizontais, mesmo num desenho geométrico, como na clássica Futura, do Paul Renner. Caso contrário, as laterais da letra O ficam parecendo mais finas do que o topo ou a base. Fica “errado”. Exatamente como vejo diante de mim.

A Futura, pensando bem, é de 1927. E essa capa tá linda. O que é isso que estou sentindo?
Gente, olha esse R — que maravilhoso!

Foram anos e anos de prática aprendendo a refinar o meu “olhar tipográfico” — o que esperamos que seja um pouquinho mais fino, um pouquinho mais grosso, um pouco mais alto ou mais baixo.
De volta à tipografia na capa do livro, observe que no topo e na base do D, a conexão entre a horizontal e o círculo é um pouco abrupta.

Isso é bem sutil para quem não é type designer. Mas é como se um círculo perfeito fosse cortado ao meio e soldado aos traços horizontais do D. Meus mestres diriam que é preciso suavizar aquelas áreas onde eles se encontram para que o desenho fosse mais fluido, mais natural. Natural, conforme o ato de escrever aquele traço com a mão. Ele aconteceria num movimento contínuo.
Agora, se a caligrafia está cada vez mais distante do nosso dia a dia, talvez o pixel, um quadrado perfeito, sem diferenças entre horizontais e verticais, represente uma nova ordem mundial.
As pessoas que esperam ver ajustes sutis de contraste, com o tempo, desaparecerão. Mas antes disso, denunciarão os erros da geração pós-Coca-Cola.
Será bem devagar, porque tipografia é convenção e evolui a passos muito lentos.
Ambas as formas irão co-existir e também darão luz a inúmeras variações intermediárias. Que irão chocar, ou apenas fazer estranhar, ou passarão completamente despercebidas, por diferentes pessoas. E tá tudo bem.
Diferentes projetos exigirão soluções diferentes.
Ou, nada disso vai acontecer, e isso é apenas uma modinha passageira.
De qualquer jeito, uma verdade permanece atemporal:
A sensibilidade, a leitura do contexto e a vantagem de não carregarmos certezas absolutas permanecerão perpétuos.
É o que faz a capa da Luciana Fachinni’s, e a fonte Studio Feixen Sans, serem brilhantes, especialmente para um livro chamado Mudar.
Fabio Haag